“ Tudo que cala fala mais alto ao coração
Silenciosamente
Eu te falo com paixão
Eu te amo calado Como quem ouve uma sinfonia
De silêncio e de luz
Nós somos medo e desejo Somos feitos de silêncio e som
Tem certas coisas que eu não sei dizer ”
Eu Te Amo Calado
Lulu Santos
Esta semana trabalhando em um texto de Freud nos seus estudos “Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana” a respeito dos “Atos Sintomáticos” ou como costumamos chamar os “atos falhos”, fui pega de surpresa cantarolando uma música bastante conhecida do Lulu Santos: “Eu Te Amo Calado” que em seguida me remeteu a lembrança do filme que está em cartaz e que recebeu esse ano, merecidamente, o Oscar de melhor filme estrangeiro, “O Segredo de Seus Olhos”. Mas o que há de comum, qual o fio que costura essa música, o filme e a idéia de Freud sobre os atos falhos?
Freud se refere aos atos falhos como indícios valiosos que revelam até mais do que o sujeito desejaria saber. Lembram quando alguém troca o nome do namorado/a por outro? Daquele tropeço na fala ou na escrita sugerindo uma idéia de engano e casualidade? “Ops, não era isso que eu queria dizer”. Lapsos que cometemos diariamente. Pois bem, no filme citado, uma máquina de escrever “das antigas” falha. E falha, justamente, a letra “a”, letra cujo psicanalista francês Jacques Lacan chamou de objeto causa de desejo, isto é, o “a” como representante de um lugar que diz respeito a um vazio, uma falta. É quando quem faz a função materna para o bebê se faz faltar, deixa um espaço em que este passa a ocupar produzindo o seu desejo. Por isso, o objeto “a” como representante dessa falta também remete o sujeito a sua verdade. Uma verdade sobre seu desejo, sobre aquilo que lhe move, dando-lhe direção e, ao mesmo tempo, causando medo, temor de realizá-lo.
Durante a trama de suspense e romance entre um oficial de justiça e sua chefa, essa máquina que falha, que inicialmente pertence ao uso desse oficial, circula pelo tribunal, porém sempre acabando por retornar a ele. E que, por diversas vezes, se vê obrigado a preencher com o “a” à caneta, nas palavras cujo espaço ficava em branco.
O filme inicia com o protagonista, Espósito, lendo uma anotação que faz após acordar, possivelmente uma lembrança onírica de uma imagem-palavra que haveria sonhado. “TE MO”. “O que teme?” Pergunta sua amada no final do filme quando encontra essa anotação. Desconversando, ainda impossibilitado de falar sobre seu ato de pensamento e escrita, que falha como a velha máquina de escrever, Espósito já sabe de sua verdade. Já sabe da palavra de amor que permaneceu calada durante 25 anos e de cujo temor por assumir seu desejo o impossibilitou de vivê-lo até aquele momento. O que lhe restou aficcionar-se por um caso de estrupo seguido por assassinato de uma jovem esposa onde se entrelaça uma identificação idealizada tanto com o assassino quanto com o marido da vítima por realizarem algo que é do seu desejo. Desejo esse inibido diante do objeto desejado. Com o marido pelo amor que conseguia assumir e dedicar e, com o assassino, por consumar em ato o que é da ordem do desejo sexual. Interroga-se Espósito ao passar os últimos 25 anos vivendo silenciosamente (como diz a música recordada) esse amor: “Como se faz pra viver uma vida cheio de “nada”? Como se faz para viver uma vida vazia?” O vazio, o nada remetem Espósito a romancear o caso e ao reencontro com a velha máquina. Escrever sobre o caso é como escrever sobre sua vida e sobre esse vazio que acaba por ser representado, figurado pelas sílabas te e mo, ou melhor, te_mo. TE MO. É através da escritura de sua novela que algo faz marca. O subjetiva. E o possibilita preencher sua escrita precária com a letra que falta a respeito da verdade do amor que ali pedia passagem como um ato que falha. Falha na ótica da linearidade esperada pela lógica social e temporal que predomina em nossa cultura. Uma lógica regida pela continuidade, organizada por um tempo cronológico. O ato que falha, fala! É no corte, na ruptura, na ordem que é interrompida que se dá espaço a todos os outros possíveis. Novos modos de ser, de sonhar, de amar... Como acontece com o nosso protagonista.
Que delícia de escrita!
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