14 de out. de 2010

Entre Mineiros e Socorristas, Salvam-se Todos na Sociedade do Espetáculo!

Entre a emoção do desastre e a comoção do salvamento nascem celebridades. A catarse é a essência da tragédia, esta tem por meta a purgação dos temores, das paixões e da piedade. Ao assistir aos noticiários e ver imagens do salvamento fiquei pensando: "qual deles escreverá um livro?" Que ingenuidade a minha... Logo percebi que livro seria a melhor produção de um acontecimento como esse que deveria servir como dispositivo de reflexão sobre o sistema de exploração capitalista, sobre as condições do trabalhador, do sofrimento que engendram atividades como essa. Uma narrativa sobre a experiência, como diria Walter Benjamin, compreendendo algo que é singular, que toca o sujeito e o transforma. É na possibilidade de falar, escrever, enfim, narrar a experiência que essa se constrói. Mas a construção que testemunhamos nesses dias nos remete ao que Guy Debord (2003) chamou de Sociedade do Espetáculo, uma cultura narcísica que produz subjetividades dependentes do olhar do Outro (Lacan). Subjetividades frágeis que buscam na imagem, na correspondência ao que o Outro do social determina como ideal, um porto seguro, uma unidade. Observa-se quase um dilaceramento do Eu pelo sentimento constante de desamparo frente à velocidade e a corrida imposta pelos modos de ser contemporâneo. “[..,] o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. [...] negação invisível da vida, uma negação da vida que se tornou visível. (op. cit., p.12) E nesse espetáculo atual dos mineiros um movimento singular é capturado e transformado no “mesmo”, no idêntico, no igual, em um verdadeiro “reality show” sem os custos dos mesmo e com certeza com lucros muito maiores. Uma construção trágica da modernidade, uma absoluta massificação da diferença, tornando uma experiência-acontecimento (Deleuze), cuja semelhança com a tragédia “Antígona” de Sófocles que nos remete a refletir sobre a experiência do estar “enterrado” vivo, ao invés dessa reflexão, torna-se porta-voz da usurpação da catarse própria da tragédia. A reação de espanto, temor, terror, as risadas, muitas vezes compulsivas e inesperadas, diante dessas imagens do belo (no salvamento, no encontro) e do horrível (no perigo) tem como efeito, na voz do povo, o reflexo da catarse do sujeito que agora se produz, como nas tragédias gregas, o herói trágico. Que sejam heróis “de verdade”, na coragem e na arte de lutar pelo seu desejo, construindo a vida através dessa experiência mais do que na produção barata de imagens vazias através da venda de suas identidades.
Trabalhar sobre a experiência supõe uma dupla; a de falar/escrever e ler/escutar. Este encontro entre o falar e o escutar vai tecendo uma rede, entrelaçando pedacinhos de tempo perdidos e compondo um discurso onde se atualizam os fantasmas. A repetição do e no ato de falar permite compor e recompor as imagens de si na própria experiência da narrativa, construindo assim uma ficção e dando ao sujeito o "status" de personagem. O que cada mineiro e socorrista, personagens dessa experiência podem compor como o melhor jeito de construir e elaborar esse acontecimento escolhendo a via do simbólico ao invés de sucumbir exclusivamente ao mundo das imagens, onde não há elaboração possível dessa experiência.

6 comentários:

  1. Minhas desculpas aos leitores, este texto foi escrito entre bocejos... porém o tema e as idéias estavam pedindo passagem ao campo das palavras! Aos poucos vou reecrevendo!

    ResponderExcluir
  2. E eu vou lendo, umas 200 vezes até entender. Por exemplo, não vejo distinção entre simbolo e imagem, que fazes no final do texto.
    Vejo coisas positivas até neste episódio televisionado. O abraço sincero, e empatia que temos uns com os outros, nos tornando iguais, seja com presidentes ou com mineitos simples. A responsabilidade que sentimos uns com os outros nesse momento de tragédia, não deveria ser presente sempre, ao vivo, no aqui e agora? As imagens estão no ar, e aprisionalas na memória talvez seja o que diferencie uns dos outros. Passa por interpretações, território particular, conhecimentos, experiências, consciências... Gostei muito de um em especial que relatou estar enterrando 40 anos de sua vida e renascendo. Meu sonho de consumo. Só a eminência da morte pra nos trazer de volta a vida. abraços

    ResponderExcluir
  3. Olá, Rogério! Obrigada por seu comentário... vou tentar debater à altura suas questões. Em nenhum momento pensei não ser importante o ocorrido, bem como o papel da imprensa em o comunicar. Com certeza é uma emoção muito grande e fiquei feliz como a maior parte (espero) da humanidade pelo salvamento. E isto tem que ser realmente valorizado e servir como exemplo de um cuidado do governo com o seu povo. Por esse mesmo motivo é que a exploração sensacionalista visando lucro pela transformação dessas pessoas em celebridades, buscando fazer de um acontecimento tão importante mais uma peça dessa engrenagem produtora de "aparências" cuja venda é de interesse muito mais privado e para poucos do que de interesse público, é que interrogo o valor. Essas pessoas, suas famílias e aqueles que se identificaram com o sofrimento desses homens merecem a possibilidade de elaborar esse drama que viveram. Transformar esse fato em espetáculo não fará, com o que pode ter sido vivido como um trauma, cicatrizar as feridas. E, assim, muitos pesadelos, entre outros sintomas, como fobias e angústia encontrarão seu lugar.
    Assim, o que questiono não é o fato da divulgação, etc, mas, em outras palavras, porque essa mesma imprensa e o nosso governo não trata de dar visibilidade, por exemplo, às pessoas que vivem em baixo na ponte no riacho Ipiranga, em meio aos ratos e todos os outros tipos germes? Se não são vítimas de um desmoronamento de terra, será que não são do desmoronamento de um sistema?

    ResponderExcluir
  4. Sim, há muitas indagações a se fazer. Até porque pra desmoronar um sistema parte-se do princípio de que um dia ele esteve em pé. Será reamente que ocorreu isso alguma vez? Portanto é possível que este sistema não passe de uma imagem em nossas mentes, e imagens são distintas da realidade, são facilmente construídas e tem nos tornado prisioneiros de nossos condicionamentos engendrados por elas. Longa reflexão... Abraços.

    ResponderExcluir
  5. A questão social está na base da busca do heroi, de um heroi, de muitos herois...homens simples, que podem se transformar, que colocam para fora toda a sua força de vida. Como necessitamos disto! Ótimo texto Doutora!

    ResponderExcluir
  6. Com certeza, essa produção toda de heróis, ou melhor, super heróis, é uma necessidade da humanidade! Obrigada, Adriana! Teus comentários, dentro e fora do blog, sempre são dispositivos de pensamentos!

    ResponderExcluir