No Brasil e em muitos países ocidentais o público, especialmente o feminino em casos de Anorexia e Bulimia, padece pelo que a Medicina nomeia de Transtornos Alimentares. Isto é, patologias associadas à oralidade, ligadas à ingestão da comida que, entre outras consequências, alteram a noção de esquema e de imagem corporal do sujeito podendo ocasionar exclusão social, sofrimento e até a morte.
Entre esses transtornos, destaco aqui para discussão a Anorexia Nervosa, a Bulimia Nervosa e a Obesidade Mórbida. Sintomas sociais que se produzem a partir de uma operação psíquica singular do sujeito desde sua inserção na cultura para lidar com um mal-estar característico da vida humana. O capitalismo gera necessidades e o desejo é traduzido pela linguagem midiática como desejo de algo, desejo de objeto. Introduz-se na economia uma promessa de gozo através do consumo, são oferecidos todos os objetos passíveis de mercantilização como, por exemplo, o carro do ano, o corpo perfeito, etc, sendo representante daquilo que poderia vir a dar conta deste mal-estar, visando uma sensação de plenitude e gozo ideal, porém, que desaparece minutos depois de alcançado o bem mais desejado.
Assim, estes sintomas estão, de algum modo, relacionados a uma obsessão pelo corpo, uma tentativa de se colocar como objeto fálico. Não basta somente ter o falo, mas ser o próprio falo, fazer-se valer socialmente através da imagem.
Para a Medicina que situa o diagnóstico dentro de uma lógica cartesiana, principalmente, a partir do sintoma orgânico, esses modos de ser se caracterizam como patologias específicas, síndromes e/ou doenças. Neste sentido, são identificadas a partir de índices quantitativos e qualitativos que situam o sujeito em determinada síndrome, como, por exemplo, pelo seu IMC (índice de massa corporal) e outros critérios técnicos comportamentais.
A Obesidade, segundo esta ciência, é o acúmulo de massa gordurosa no corpo e é diagnosticada nos sujeitos com IMC igual ou maior que 30Kg/m2, e Obesidade Mórbida é aquela apresentada nos sujeitos com um IMC igual ou maior que 40Kg/m2 (SEGAL, 2004). Esse padrão médio, segundo a Medicina, determina uma série de complicações “[...] clínicas, psicológicas, pessoais e sociais [...] a taxa de mortalidade dessas pessoas pode ser de até 12 vezes maior do que para pessoas não obesas da mesma idade, sexo e altura [...] quando perdem peso eles têm uma chance menor do que 10% de manter essa perda de peso [...] Além de eles terem uma elevada associação com doenças vasculares, cardíacas metabólicas, osteoarticulares e até alguns tipos de câncer, os pacientes com Obesidade Mórbida apresentam taxas maiores de infertilidade, apnéia do sono e até acidentes automobilísticos.” (SEGAL, 2004, p. 55-56)
Todas essas “disfunções”, então, podem levar o sujeito à morte associada a sua quantidade de massa corporal. O conceito de Obesidade Mórbida subjetiva o sujeito a partir deste saber científico generalizado que é constituído em torno do seu sintoma. Portanto, um sujeito que recebe este diagnóstico constrói também um modo de ser ditado por esse saber que o condena à morte. Isto é, o diagnóstico de Obesidade Mórbida pode ser interpretado como uma sentença de morte cuja única saída atualmente, determinada pelo campo médico, é a realização das cirurgias bariátricas. Intervenções que apresentam um considerável risco de morte no próprio processo cirúrgico e pós-cirúrgico e que não apresentam garantias na manutenção do IMC a longo prazo.
A Obesidade Mórbida ainda se caracteriza pela compulsão alimentar sem um limite simbólico que a interrompa. Um desejo insaciável pela ingestão de comida que só pára no limite físico do corpo. É justamente aí que se observa a tentativa do sujeito de terminar com o mal-estar, de atingir um gozo sem limites, porém totalmente ilusório, acabando por produzir um sintoma ainda mais trágico.
Segundo uma interpretação através da psicanálise, conforme trabalho em minha Tese de Doutorado, a Obesidade Mórbida surge como sintoma e não como síndrome propriamente. Isto é, ela não é causa e, sim, efeito. Efeito de uma relação que se constrói no início da vida quando o bebê está submetido aos cuidados do outro. É, no “Estádio do Espelho” (0 aos 18 meses), segundo Jacques Lacan, que se constitui o Eu do sujeito. Este outro que faz a função materna para o bebê ocupa o lugar de um “Outro” que representa pra ele todo um mundo de linguagem e que o insere na cultura. Um Outro que, na dimensão do imaginário, constitui-se como um fantasma e demanda deste um modo de ser e de desejar. No caso do sujeito que se constitui com esse sintoma, observa-se na relação com o Outro uma posição deste como objeto, tornando-se ele mesmo um “tudo”, tamponar qualquer falta para o Outro, buscando continuar como uma extensão deste. A compulsão alimentar está exatamente na ordem do não deixar faltar, assim, também tentando não se deixar faltar para o Outro. Posição de submissão.
A Bulimia e a Anorexia, ao contrário, é um fazer-se faltar ao Outro e se caracterizam pelo pânico de engordar, afinal um dos requisitos imaginados para as jovens meninas serem socialmente aceitas em seu grupo é a boa forma. A perda de peso, condição para a boa forma, conforme as modelos bem sucedidas, as Top Models, deve se realizar como prova de força de vontade e esforço, portanto, é aqui que a jovem pode começar a ser responsável, meritosa, participativa e incrivelmente magra .
A Anorexia se caracteriza, segundo Ramalho (2001, p. 1), "por uma restrição voluntária muito grande da alimentação levando a paciente a perdas extremas de peso, podendo chegar à morte." Nessa negação do alimento o sujeito pretende impor uma separação com seu próprio ser através de se fazer “nada” e se apropriar de si perante e contra o Outro que imaginariamente sente lhe sufocar. Aquela “mãe” imaginária que busca preencher todos os buracos no e do filho, sem querer que lhe falte nada exagerando nos cuidados com seu corpo e lhe faltando a palavra (simbólico). Assim, o sujeito com Anorexia se nega a comer mostrando seu poder frente ao Outro e buscando desesperadamente essa separação. Caracteriza-se, ainda, pelo sujeito perceber seu corpo através da imagem que faz desse como um corpo gordo, o que lhe deixa em pânico, pois é sentido como sinal de sua submissão.
A Bulimia é caracterizada, sob a ótica da mesma autora, pela ingestão compulsiva e rápida de uma quantidade excessiva de alimentos. “A experiência é vivida como descontrole e estranhamento sendo seguida por vômitos provocados, uso de laxantes e diuréticos, jejuns e exercícios físicos excessivos.” Tanto a Anorexia quanto a Bulimia atuam na "tentativa de inscrever uma falta simbólica" (Ramalho, 2001, p. 116) através do consumo do próprio corpo, porém, na Bulimia, observa-se uma busca de controle onde reside o pretenso poder do sujeito. Incorpora para expulsar, come e vomita, um controle da ingestão que se coloca como artifício de poder mesmo que ilusório. Pois, como na Obesidade, o efeito trágico é maior.
O corpo, neste contexto, situa-se na posição de puro objeto cujo domínio total encontra promessas de garantia pela ciência e por todos os especialistas da saúde e da beleza. A boa forma vem como mais uma promessa de preenchimento desta falta. E cada um desses sintomas vai se realizar de modo diferente na relação que o sujeito estabelece na busca por este “bem” a partir de como este vai se inserir no social desde seu processo de subjetivação o que inclui também sua história e relação familiar.
Assim, interroga-se: estar-se-ia negando sintomaticamente esta demanda de consumo e gozo total através de um corpo informe? Isto é, esses sintomas ou patologias estariam num lugar de negação de um corpo belo, total e perfeito? Fazendo desse corpo um furo no saber do Outro? A Obesidade Mórbida, a Anorexia e a Bulimia estariam, entre outros sintomas e patologias, denunciando uma precariedade nesse modo de vida ocidental contemporâneo?
REFERÊNCIAS
1. FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980, V. XXI, p. 73-171.
2. LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
3. MAIRESSE, Denise. Condição de Morbidez: uma vacilação ao trágico? Tese de Doutorado em Educação – UFRGS, 2009.
4. RAMALHO, Rosane Monteiro. Anorexia e Bulimia: manifestação do sofrimento feminino hoje. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica – PUCSP, 2001.
5. SEGAL, Adriano. Obesidade Não Tem Cura, Mas Tem Tratamento. 2 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
muitoo boom gostaria de ler mais good bay
ResponderExcluirObrigada!
ResponderExcluir